Religiões Gerais
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RUPTURAS E TRANSFORMAÇÕES O ponto de partida deste texto apóia-se no fato de que as relações sociais no mundo são diversas e plurais. Por quê? Porque, no passado, deu-se uma ruptura religiosa com o mundo medieval, o qual tinha como centro a teologia cristã, que, a partir de uma única interpretação da vida e das relações sociais, comandava a estrutura social. A ruptura dessa centralização recebeu o nome de Modernidade, que tem seu marco teórico a partir do século 16. A Modernidade ocidental é um fenômeno histórico complexo e de longa duração. Sua descrição e análise não cabem aqui, mas podemos mencionar como o campo religioso foi transformado. A Modernidade representou para o mundo ocidental uma verdadeira revolução na maneira de a pessoa perceber-se diante do mundo, de sentir, de amar, de relacionar-se e organizar as suas relações sociais. No decorrer dos quatro séculos seguintes, a religião perderia sua hegemonia na sociedade, seja na esfera política seja na social, cultural e econômica. A religião perdeu sua posição central no âmbito público, no sentido em que se estabelecia como princípio ordenador da tradição e da cultura, para ser reduzida à esfera privada. Essa passagem foi denominada pelos estudiosos de secularização.
O século 20 acabou, a técnica e a ciência avançaram revolucionando a medicina, as comunicações e a indústria bélica, mas a brecha entre países ricos e pobres aprofundou-se, a exclusão de grandes porções da humanidade dos benefícios econômicos, sociais e culturais estabeleceu-se como forma de organização social. Portanto, a promessa não foi cumprida. Além disso, longe de a religião ser banida do âmbito público, ela parece ter ganho um revigoramento, um reencantamento do religioso e do mágico, com o ressurgir de movimentos religiosos que trazem novas formas de expressão, inquietações e preocupações, incorporando ou rejeitando a nova fase do capitalismo, seja na sua face econômica (neo-liberalismo), seja na sua face sociocultural (globalização). OS IMPACTOS NA ESFERA RELIGIOSA Para tentar compreender, minimamente, o mundo religioso atual, faz-se necessário perceber quais são as mudanças profundas que a Modernidade provocou na esfera religiosa. A primeira que podemos destacar é a capacidade de livre escolha que o homem e mulher contemporâneos têm. A Modernidade trouxe consigo o valor psicológico e social de escolher, que consolidou a formação do indivíduo, independentemente da tradição e da cultura como processos impostos. Escolher passou a significar a oportunidade de exercer a liberdade de poder optar entre diversas alternativas, pressupondo liberdade também na oferta.
A escolha da própria religião será, então, orientada por critérios diferentes da tradição e da cultura, como o conforto, o bem-estar e a conveniência. Assim, vemos que a religião não é mais, nos dias de hoje, uma imposição social nem uma herança cultural. Isso acontece mesmo nos povos latino-americanos, nos quais a religião continua sendo um dado importante, mas não decisivo, sobretudo nos grandes centros urbanos. Merece ser destacado que, se o indivíduo moderno tem a oportunidade de escolher sua religião, pode também escolher não ter religião nenhuma, ou ter uma religiosidade fora de um sistema oficial de religião (Igreja). Essa última atitude muda radicalmente a centralidade das instituições, pois temos pessoas religiosas sem instituição, trazendo novos desafios para os grandes sistemas religiosos contemporâneos. PANORAMA RELIGIOSO NO NOVO MILÊNIO O século 20 caracterizou-se pela sua radicalidade nos processos iniciados na Modernidade. A opção pessoal, valor fundamental defendido pelo individualismo liberal, manifestou-se na sua máxima expressão ao transformar o fiel em consumidor. Ser fiel, de qualquer denominação religiosa, teria como princípio estar ligado a uma série de valores éticos, acreditar no sentido da vida, da felicidade, do além, na explicação última da existência humana, etc.. No mercado religioso, ao ser o fiel transformado em consumidor de bens religiosos, deixa de ser um crente ou fiel de uma instituição e de seus princípios, para se transformar num mero consumidor da religião, satisfazendo suas necessidades pessoais do tipo emocional, existencial ou econômico. Os fiéis consumidores procuram a religião para satisfazer alguma carência, não mais para dar sentido a sua existência. Essa realidade, que pode ser observada como fenômeno nas grandes religiões de salvação (budismo, islamismo, cristianismo, judaísmo), representa uma realidade complexa e uma grande interpelação para as instituições. Hoje se fala em privatização da religião porque as pessoas fazem da religião uma escolha particular e não mais uma opção dentro de uma coletividade. Como podemos observar, a experiência humana vai-se transformando, desde a Modernidade até a segunda metade do século 20, por alguns chamada de pós-Modernidade, para outros de globalização.
Nesse sentido, o homem e a mulher modernos não colocam mais como elemento fundamental da sua ação pessoal o "ter sentido na vida", muito pelo contrário, eles podem dizer a si mesmos: "eu posso viver sem sentido na minha vida"; mais ainda: "posso encontrar sentido na minha vida em outra parte, que não seja a religião". Se a função fundamental da religião é dar sentido teológico a existência do ser humano, podemos perguntar: qual é seu papel substancial diante de um mundo que pode viver sem Deus, contra Ele, ou sem Ele? É nesse ponto que as instituições religiosas entram em crise. Primeiro, porque perdem sua função social de dar sentido à existência humana. Depois, concorrem entre si e com o mundo contemporâneo de consumo para angariar os poucos fiéis que podem arrebanhar. Soma-se a isso a constatação de que muitas pessoas se reconhecem como religiosas, mas sem ligação institucional, proclamando que é possível viver com um sentido religioso, mas sem pertença a uma instituição determinada. Vemos surgirem, em diferentes regiões do planeta, religiosidade sem religião, o sagrado sem referência institucional, uma espiritualidade sem contexto eclesial. Observamos uma religiosidade que retira os mais diversos elementos simbólicos das tradições religiosas e os mistura, recriando simbolicamente novas experiências; em todo canto emerge o sagrado e o reencantamento do mundo, pela magia e as referências esotéricas. Nos grandes centros urbanos e nas metrópoles, não é difícil encontrar locais de consumo religioso, como qualquer outro produto cultural. Observa-se uma nítida emergência de religiosidades diversas com expressões diferenciadas, segundo a classe social e a origem étnica. Na França, por exemplo, são chamados de novas seitas os grupos que parecem religiosos, mas que são mais de cunho filantrópico ou de solidariedade, outros são quase religiosos, e outros não se assumem como religiosos, mas o parecem. Outra característica do novo milênio é que as pessoas podem encontrar diversas formas de dar sentido a sua vida, sacralizando o que anteriormente era tido como profano, como a ciência, a tecnologia, a ideologia. Assim, o indivíduo moderno encontra um sentido existencial no consumo e na racionalidade. Ele, porém, se coloca também na opção de não ter um sentido religioso. Opção essa chamada, convencionalmente, de ateísmo. O ateísmo tem sido interpretado como decorrência da secularização e do encantamento racional. É importante ressalvar que o ateísmo não é um fenômeno homogêneo e em algumas áreas geográficas (como o Terceiro Mundo) é inexpressivo, demograficamente falando. Como fenômeno social, concentra-se mais nas camadas intelectualizadas dos países ricos e em algumas dos pobres. De qualquer maneira, o ateísmo é um item a mais nas agendas das instituições religiosas. DA BANALIZAÇÃO AO FUNDAMENTALISMO O século 21 começa com a possibilidade de viver o religioso fora do institucional, o sagrado longe do institucional, a espiritualidade distante dos rituais convencionais, os valores éticos afastados de sistemas religiosos e tradicionais. Assim, a desinstitucionalização e os sincretismos místicos formam parte do pluralismo religioso vigente. O exemplo que mais ilustra essa dinâmica é a New Age (Nova Era), caracterizada pelos especialistas como uma espiritualidade difusa que dilui experiências de sensibilidade planetária com exigências éticas; que mistura rituais convencionais cristãos com terapias psicológicas e técnicas de auto-ajuda, que proclama direitos ecológicos com expressões holísticas de harmonia individual e coletiva.
Além disso, os elementos simbólicos que são retirados das diversas religiões não levam em conta seus contextos sociais e históricos, consequentemente, há um processo acelerado de descontextualização das referências sagradas, portanto, a sua banalização. Por exemplo, como poderia ser definida uma reunião, realizada num bairro de classe média da grande São Paulo, que começa com mantras hindus, continua com reflexões de auto-ajuda e termina com rezas católicas, tudo num clima ambientado entre símbolos do Candomblé? Se, por um lado, observamos a emergência de grupos religiosos sem referência institucional, realizando misturas diversas, de outro lado, vemos a existência de grupos que radicalizam sua pertença religiosa, autoproclamando-se defensores da ortodoxia da suas doutrinas e dos seus rituais simbólicos, isto é, o fundamentalismo religioso. Em sua essência, o fundamentalismo é uma maneira de se posicionar no mundo. Essa atitude caracteriza-se por desenvolver um modo autoritário e intolerante, impondo-se compulsivamente e não admitindo o meio termo. O olhar fundamentalista é sempre uma maneira unívoca, unidirecional e unidimensional de ver o mundo. As pessoas fundamentalistas não aceitam, por princípio, aquilo que seja diferente daquilo que elas compreendem como componente insubstituível da sua verdade e das suas origens. O fundamentalismo está relacionado a correntes de pensamento tradicionalistas e conservadoras, nas quais seus membros são invariavelmente reativos e reacionários. Se tivéssemos que sintetizar os elementos constitutivos do fundamentalismo religioso, poderíamos resumi-los em três. O primeiro elemento diz respeito aos princípios universais exclusivos sobre o bem e o mal, que se tornam referência absoluta na concepção de mundo de seus adeptos. O segundo elemento é a ética religiosa que perpassa a vida cotidiana de seus fiéis, sendo o parâmetro que permite ter um instrumento de controle social, tanto de corpos quanto de consciências, por parte de grupos e estados que sustentam o poder. O terceiro elemento é ter uma única fonte de interpretação do livro sagrado, o qual contém leis e princípios divinos. Essa interpretação será concebida como a única interpretação intermediária, entre Deus e a humanidade, tornando-se fonte de poder para os indivíduos ou grupos que se atribuem o direito de interpretação. As religiões que possuem um livro santo são as que têm mais propensão para se tornarem fundamentalistas. Dentre as características do fundamentalismo, encontramos uma insistente reação à Modernidade e sua racionalidade, que foi imposta pelos países ocidentais às mais diversas culturas do planeta. O fundamentalismo desenvolve-se em ambientes tradicionais e conservadores que vão desde os judeus ultra-ortodoxos até os campos de treinamento de Bin Laden. As manifestações fundamentalistas são contraculturais, isto é, tudo aquilo que seja cultura moderna é rejeitado em nome de Deus, da Bíblia ou do Alcorão. Os fundamentalistas dividem-se entre os valores do humanismo secular e seus benefícios e a preocupação visceral sobre o risco de desagregação que os mesmos trazem a suas crenças. Diante de um Estado que impõe seu pensamento liberal e seus valores seculares, a reação dos grupos fundamentalistas é a de violência física e simbólica. Basta lembrar a revolta da população de Kaduna, Nigéria, contra a organização do concurso de Miss Universo, em novembro de 2002. Outra característica do fundamentalismo é a visão maniqueísta (divide o mundo entre o bem e o mal) e apocalíptica que seus membros têm da vida, reagindo com tendências satanizadoras e antidemocráticas contra seus adversários.
Historicamente, a palavra fundamentalismo foi utilizada, primeiramente, nos EUA para identificar os grupos do pentecostalismo protestante, no final do século 19. Além do pentecostalismo radical, hoje nos EUA encontramos a Maioria Moral, um grupo que nasce como reação às migrações constantes de latinos e asiáticos, que tem suas raízes no fascismo e pode ser localizado na ultradireita estadunidense. Já o fundamentalismo no Oriente e Oriente Médio é associado ao Islã e aos judeus ultra-ortodoxos, sendo essa generalização uma ligação equivocada. O fundamentalismo tem na incerteza criada pelo pluralismo religioso, manifestada nos mais diversos grupos de orientalização e privatização religiosa, seus inimigos potenciais. Soma-se a isso a relação do mundo moderno com a religião, que é mediada pelos meios de comunicação e a telemática, criando uma cultura alicerçada no espetáculo e no simulacro. Assim, a experiência religiosa é submetida também à exigência de novidade, de hiperestímulo, gerando crentes que procuram a religião só para consumir, como já assinalamos anteriormente. Por isso, e por outros fatores, observamos que no mundo atual o trânsito religioso parece ser a maneira como nossos contemporâneos ligam-se às religiões institucionais. Na procura de satisfazer suas necessidades, curiosidades e desejos de experimentar algo novo, tornam-se consumidores religiosos neste grande mercado dos sentidos que virou a religião. OS DESAFIOS RELIGIOSOS DO SÉCULO XXI Sem dúvida, os desafios religiosos e espirituais do novo milênio irão se mover, quem sabe, de uma maneira pendular, entre expressões difusas, misturadas e sincréticas, tipo New Age, e fundamentalismos acirrados que levantam suas bandeiras bélicas e de terror. O debate das futuras gerações parece que se cristalizará entre a banalização de valores e rituais e a defesa fundamentalista dos mesmos. Para as instituições religiosas, esse desafio torna-se numa fonte de debate, na busca de estratégias e de soluções diante do mercado religioso e de consumo. Para o crente e fiel religioso, esse mesmo panorama vai se transformar em fonte de angústia e de incerteza, sendo seu maior desafio transitar entre experiências fluidas que lhe dão conforto e bem-estar, reduzindo-o a consumidor religioso e, (ou) fundamentalismos que lhe dão certezas absolutas e seguranças escatológicas, levando-o a uma visão acética da religião. Seja como for, o maior desafio do século 21, que parece delinear-se como místico, é conviver com o pluralismo religioso. Às novas gerações, cabe diminuir as distâncias ideológicas, evitando a manipulação política das razões religiosas em função da guerra e educando-se na tolerância e na aceitação do diferente. Postado pelo professor Fernando
Nota (1) Berger, Peter. The Desecularization of the World: A Global Overview. MI. USA. Wm. B. Erdmans Publishing Company, Grand Rapids, 1999. Brenda Carranza é formada em Teologia e mestre em Sociologia, doutoranda em Ciências Sociais.
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