O novo feminismo
Como pensam as jovens ativistas que usam o corpo como forma de expressão, protestam com ousadia e irreverência, têm como bandeira a liberdade e a diversidade e defendem as minorias
Natália Martino e Rodrigo Cardoso
Confira, em vídeo, o depoimento de Yolanda Prado, 81 anos, uma das mais antigas feministas brasileiras:
1911
A luta pelo direito ao voto marca a primeira onda feminista do mundo
2012
Ativistas nuas em frente à Torre Eiffel, em Paris, pelo fim da violência sexual
Outro exemplo desse novo feminismo, no mês passado, a Marcha das Vadias tomou ruas e avenidas de cerca de 200 cidades no mundo em países como Índia, África do Sul, Austrália, Alemanha e Brasil, tendo como tônica ativistas com seios de fora. O movimento foi criado em 2011, na cidade de Toronto, no Canadá, depois que um policial aconselhou mulheres, durante uma palestra de segurança pública, a não vestir certas roupas para não serem estupradas. “Não são apenas as boas meninas virgens que devem ser respeitadas. Essa é a novidade”, afirmou à ISTOÉ a canadense Heather Jarvis, uma das idealizadoras da marcha. “As mulheres podem ser quem elas quiserem e não devem ser julgadas e muito menos violentadas por causa de suas escolhas.”
EXPOSIÇÃO
A paulista Sara, em um protesto no Brasil, viajou à Ucrânia
para fazer um curso com as ativistas do Femen
Traço marcante do ideário neofeminista, a
agenda que pauta essas ativistas é muito mais ampla do que as
manifestações contra abusos em relação ao gênero. Elas têm se
posicionado sobre modelos de desenvolvimento e questionam o capitalismo e
as violações de direitos de comunidades indígenas femininas, entre
outras questões. “Lutar pelos direitos em geral e não só ao que se
refere às mulheres tem revitalizado o movimento feminista”, afirma a
doutora em filosofia Carla Regina, da Universidade Federal Fluminense
(UFF). A forma de protestar tem conferido irreverência ao movimento e
tirado o ranço que o conservadorismo deu ao termo feminista. É o que
pensa Margareth Rago, professora do Departamento de História da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para ela, a caricatura
feminista dos anos 70 e 80 era a de uma mulher séria, asséptica e nada
erotizada. “As jovens que participam das Marchas das Vadias, por
exemplo, entram com outras cores, brincam com seus corpos e questionam
todas as convicções”, diz a pesquisadora na área de gênero e feminismo.
No Brasil, uma estudante de cinema de 19
anos tem se apresentado como representante da chamada nova ordem do
movimento feminista. Natural de São Carlos, interior de São Paulo, Sara
Winter é a primeira brasileira a fazer parte da Femen, grupo feminista
ucraniano criado em 2008 que possui cerca de 400 membros espalhados pelo
mundo. Essas moças, altas e loiras em sua maioria, protestam de topless
por diferentes motivos. Estiveram em Belarus de peito aberto contra o
preço do gás natural; em Milão (ITA) contra a ditadura da magreza e em
Paris (FRA) gritando contra o ex-diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn.
Grupos feministas como o Femen revelam outra marca desse movimento:
essas moças não estão sozinhas. Fazem coro com elas homossexuais,
transexuais, travestis – e, inclusive, os homens. Isso ocorre porque a
juventude feminina, hoje inserida no mercado de trabalho e galgando cada
vez mais postos de chefia, luta pela liberdade e não contra sexo
oposto. “O movimento feminista foi muito criticado em certo momento pelo
fato de a mulher protestar se vitimizando. E, hoje, ninguém está
apelando ao discurso de vítima ao ir à rua com o peito de fora”, afirma
Carla Regina, da UFF. Na quarta-feira 20, Sara embarcou para a Ucrânia
onde passará três semanas fazendo um curso com as fundadoras da Femen.
Ao retornar, a estudante inicia o ativismo da Femen Brasil no País. “Os
seios de fora chamam a atenção para o nosso protesto. Mas, com o tempo,
as pessoas passarão a prestar atenção também no que defendemos”, diz
Sara, que subiu em um dos palcos da Virada Cultural paulista para, de
topless, bradar “meu corpo me pertence”, frase clássica do movimento
feminista.
DISSONANTE
Camille Paglia é contra a Marcha das Vadias:
"Não se chame de vadia a não ser que você esteja
preparada para viver e se defender como tal", diz ela
A professora de estudos culturais da Universidade de São Paulo Maria Elisa Cevasco não é tão entusiasta quanto Schuma e tem dúvidas sobre a eficiência dos métodos utilizados pelas jovens feministas. “Estão usando o corpo, o vocabulário patriarcal calcado no fato de que a mulher está na vitrine, como uma estratégia. Será que assim se distanciam do discurso machista ou reforçam essa lógica da exploração sexual?”, questiona Maria Elisa. “Eu gostava mais quando as feministas queimavam o sutiã.” Já a escritora americana Camille Paglia, que se tornou dissidente e crítica do movimento feminista sob o argumento de que ele foi o responsável por fazer a mulher assumir o papel de vítima, não foge de outra polêmica ao criticar a Marcha das Vadias. “Não se chame de vadia a não ser que você esteja preparada para viver e se defender como tal”, escreveu a professora da Universidade das Artes, na Filadélfia. “Muitas garotas de classe média superprotegidas têm uma perigosa visão inocente do mundo.”
LUTA
Militante há 40 anos, Yolanda Prado acha as atuais ativistas divertidas
A questão do direito ao aborto, outra reclamação de outrora, é um dos pontos nos quais o movimento feminista mais encontra resistência. O documento aprovado na semana passada pelos chefes de Estado na Rio+20 não continha o termo “direitos reprodutivos”, cunhado na IV Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (ICPD), realizada no Cairo em 1994. “Há quase duas décadas, esses direitos têm sido reafirmados nos documentos das Nações Unidas e, agora, foi retirado dessa Carta graças às pressões do Vaticano. O texto é frustrante”, avalia Sônia Corrêa, que foi uma das dezenas de ativistas presentes no Território Global das Mulheres da Cúpula dos Povos durante o evento no Rio de Janeiro. A ofensiva conservadora para evitar a permissão do aborto extrapola as fronteiras brasileiras. “Essa reação fundamentalista às conquistas da mulher tem ganhado força em toda a América Latina. Na América Central, vários países revogaram o direito ao aborto”, diz Silvia Pimentel, presidente do Comitê para Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) da Organização das Nações Unidas (ONU). As chefes de Estado presentes à Cúpula das Mulheres também manifestaram contrariedade com relação à retirada da questão sobre o direito à reprodução. No documento final, formatado com a presença da presidenta Dilma Rousseff e a diretora-executiva da ONU Mulheres, Michelle Bachelet, conclamaram os Estados por plena igualdade de gênero, participação equitativa das mulheres em todos os níveis de liderança, o fim das barreiras discriminatórias, o direito à saúde reprodutiva e o fim da violência, entre outras providências. “Não podemos deixar metade da humanidade discriminada nesse processo de desenvolvimento. A participação das mulheres é fundamental”, afirmou Michelle.
FÓRUM
Durante a Rio+20, um grupo de Fortaleza protesta contra a mercantilização do corpo.
Abaixo Michelle Bachelet, da ONU, discursa na Cúpula das Mulheres
Segundo a escritora Rosiska Oliveira,
ex-presidente do Conselho Nacional de Direitos das Mulheres, a
reivindicação que mais caracteriza o momento atual do feminismo é a luta
pelo tempo. “Precisamos reorganizar o mercado, flexibilizar horários e
locais de trabalho tanto para homens quanto para mulheres”, afirma.
Debates como esse têm o poder de mudar não apenas a vida das mulheres,
mas toda a organização da sociedade. A luta das novas feministas
brasileiras costuma ter essa característica: uma pauta em prol de ambos
os sexos. “Mostramos aos homens que eles também poderiam ser outros,
diferentes do que foram educados para ser”, diz Margareth, da Unicamp. A
estudante Sara, porém, gostaria que algumas feministas que a criticam
respeitassem sua maneira de protestar. “Reclamam da exposição dos seios;
dizem que eu vou manchar o feminismo”, afirma. Schuma, da Redeh, lembra
que o corpo da mulher historicamente foi utilizado para justificar
muitas barbáries e, portanto, o desejo desse corpo livre é um despertar
da juventude do século XXI. “Estamos assistindo a uma renovação”, diz a
feminista, certa de que as bandeiras pelas quais luta há décadas estão
representadas nesse novo feminismo.