A Reforma Agrária no Brasil

As cestas básicas, o Bolsa Família e o programa de financiamento à agricultura familiar contiveram o fluxo. Mesmo assim, 100 mil famílias ainda vagam por acampamentos de sem-terra à beira das estradas. Espécies de fantasmas que o resto do País só vê ao cruzar as BRs ou ao assistir ao noticiário sobre ocupação de terra.

Organizada na sua maioria pelo MST, essa massa de insatisfeitos é apenas a ponta de um problema histórico. Existem 4,5 milhões de famílias pobres no campo, em um País onde a área rural reproduz de forma menos cínica e mais violenta a desigualdade que, nesta altura, parece um traço irremovível do DNA nacional. Mais do que o samba e o futebol, é o fosso social que identifica o rincão chamado Brasil.

Em países de grande extensão ocorre uma concentração de terra desde, ao menos, os anos 60. Esse é um argumento repisado por quem considera a reforma agrária um tema ultrapassado. Mas nos Estados Unidos e no México, por exemplo, o Estado promoveu a redistribuição de propriedades ou conduziu um processo de colonização que permitiu maior acesso aos cidadãos. No Brasil, desde o fim da escravidão, fez-se o contrário. A posse foi garantida aos senhores, apaniguados e aos que conheciam os meandros da burocracia.

Cento e vinte anos depois, estamos no mesmo ponto. Apenas 3% das propriedades ocupam 56,7% das terras agriculturáveis. Outro levantamento do geógrafo Ariovaldo Umbelino, professor da USP e estudioso dos conflitos agrários brasileiros, é mais revelador. Dos 850 milhões de hectares que preenchem nossas fronteiras, 152 milhões não possuem registro formal. Tradução: é terra ocupada de forma ilegal e cujos posseiros não pagam impostos nem estão integrados a um sistema formal de produção. Anticapitalista por natureza, medieval, a estrutura fundiária nativa costuma ser, inexplicavelmente, defendida com fervor pelos que se denominam liberais.

E mais: do total de imóveis declarados no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 82 milhões de hectares são terras públicas indevidamente apropriadas. Grilagem reconhecida.

“Por que o MST provoca tanto ódio?”, pergunta Umbelino. “Por ter colocado o dedo nesta ferida, por expor a ilegalidade da apropriação de terras. É a grande luta, secular.”

O MST existe há 25 anos. A agricultura brasileira, não se nega, conseguiu avanços inegáveis no período. As técnicas de produção melhoraram e, em muitas regiões, as relações trabalhistas atingiram a contemporaneidade. Somos campeões na produção de soja, de milho e de carne bovina. O setor é o grande responsável pelos sucessivos recordes na balança comercial.

Mas o progresso foi localizado. A violência, o trabalho escravo e a destruição da natureza continuam a se reproduzir como no século XIX. No Pará há um lugar chamado Terra do Meio, a lembrar os estranhos mundos de J.R.R. Tolkien. Lá, na Terra do Meio, uma freira é abatida em plena luz do dia. E a Justiça condena o pistoleiro e livra a cara dos mandantes, como se os Fogoiós pudessem existir sem os Bidas. Natural. Em Brasília vigora uma regra semelhante. Toda vez que uma CPI se aproxima dos corruptores, a coisa mela. É um dos raros lugares do planeta, se não o único, onde os corruptos nascem de geração espontânea e não há quem os ceve.

Os sem-terra emergem desse caldo indigesto. Nos últimos 25 anos, com uma organização desburocratizada, o MST se transformou no mais independente movimento social. Filhotes brotaram de sua costela e se espalham País afora e pelo exterior. A luta pela posse da terra, desde aquele congresso no Paraná, ficou um pouco menos desigual. “O MST é o organizador coletivo da vontade dos pobres”, disse-me recentemente João Pedro Stedile, líder intelectual do movimento. “A nossa simples existência é uma vitória da classe trabalhadora contra os setores que se apropriam dos recursos naturais apenas em proveito próprio.”

Stedile já foi retratado como um demônio, a besta-fera. São imagens que não condizem com seu estilo cerebral. O ideólogo dos sem-terra tenta, ultimamente, achar argumentos para impedir os efeitos massacrantes da figura avassaladora de Lula. O MST, a exemplo dos outros movimentos sociais, vive um dilema: como criticar um presidente e um partido com os quais mantém laços históricos? Como impedir que os programas sociais (o governo acaba de anunciar a ampliação do Bolsa Família aos sem-terra) destruam a mobilização dos trabalhadores no campo?

Apesar de boa parte da mídia anunciar, com estardalhaço, as ocupações de terra, os setembros e marços não têm sido tão vermelhos como no passado. A reforma agrária virou assunto secundário na administração petista, a ponto de o MST, constrangido em enfrentar o governo nessa área, preferir invadir áreas de multinacionais e grandes empresas brasileiras. O resultado, do ponto de vista da imagem, foi ruim. E fez aumentar a ojeriza da classe média urbana (parênteses: chega a ser cômico ver o morador de uma grande cidade que não possui um milímetro de terra ter tanto horror ao movimento).

Há uma batalha de números entre os sem-terra e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Os primeiros afirmam que o governo Lula assentou menos famílias que o antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Em 2008, segundo cálculos do MST, foram 18 mil, descontando os agricultores que receberam terras em áreas públicas na Região Norte. Para o movimento, trata-se de colonização, e não de reforma agrária.

O ministro Guilherme Cassel contesta. Diz que, de 2003 para cá, foram assentadas 526 mil famílias, metade do que o Estado fez desde o fim da ditadura. Cassel acredita que, se o Brasil assentar de 70 mil a 80 mil famílias por ano, dentro de uma década o problema de posse de terra será residual. Estudo rea-lizado em 2004 por Plínio de Arruda Sampaio propunha o assentamento de um milhão. Segundo Arruda Sampaio, esse montante nem de longe arranharia a atual concentração agrária.

Pode ser que o MST não dure mais 25 anos. Antes dele sucumbiram Antônio Conselheiro e Canudos, Francisco Julião e as Ligas Camponesas. Gente demonizada e abatida a tiro, detida à força. A truculência sempre é uma saída fácil para sufocar um incômodo. Mas não tem o poder de extirpá-lo para sempre. Enquanto o Brasil conviver com uma estrutura arcaica no campo, os deserdados se multiplicarão. E haverá quem resolva organizá-los. Tenha o sobrenome Stedile ou outro qualquer.

Fonte da Revista Carta Capital

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